Anotações sobre o benefício assistencial de prestação continuada

 

O objetivo do benefício é garantir uma renda mínima a dois grupos de indivíduos – idosos e portadores de deficiência – que estão mais vulneráveis ao risco social de não exercer atividade remunerada que lhes garanta subsistência.

1. Introdução

No Brasil, a Seguridade Social é formada pelas ações promovidas na área da saúde, da assistência e da previdência social. Diferentemente das duas primeiras, a concessão de benefícios previdenciários exige do interessado em se proteger do risco social o prévio pagamento de contribuições para o custeio do sistema.

Segundo o art. 196 da Constituição, a saúde é direito de todos e dever do estado. Os serviços públicos nessa área são prestados, de forma indistinta, a quem deles precisar, independentemente do pagamento de contribuições.

Já a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, nos termos do art. 203 da Constituição Federal, sendo um de seus objetivos, a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

A lei em questão é a de n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993, também chamada de Lei Orgânica das Assistência Social ou, simplesmente, LOAS, já bastante alterada desde a sua entrada em vigor e cujos principais aspectos serão abordados neste artigo.

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2. Desenvolvimento

2.1 Beneficiários

 O art. 203, inciso V, da Carta Magna prevê que o benefício de prestação continuada – BPC -, no valor de um salário mínimo, será devido ao idoso ou ao portador de deficiência que não possua meios de meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.

A redação original da LOAS previa que idoso era a pessoa que possuía setenta anos de idade. Tal idade foi reduzida para sessenta e cinco anos com o advento do Estatuto do Idoso – Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003. Posteriormente, o próprio art. 20 da LOAS foi alterado[i] e passou a prever sessenta e cinco anos como a idade mínima para o concessão do BPC.

Quanto ao deficiente, as alterações legislativas foram de maior monta.

A redação original do art. 20, § 2º, da LOAS, definia que pessoa portadora de deficiência seria a incapacitada para a vida independente e para o trabalho. A jurisprudência, entretanto, atenuava a exigência da incapacidade para a vida independente, sob o entendimento de que o indivíduo incapacitado para exercer atividade remunerada que lhe garantisse subsistência também deveria ser considerado deficiente físico[ii].

Visando dar efetividade ao mandamento constitucional e conferir maior proteção à pessoa portadora de deficiência[iii], a Lei Orgânica foi alterada duas vezes no ano de 2011, por meio das Leis n. 12.435 e n. 12.470, e passou a prever, em seu art. 20, §2º:

“§2º Para efeito de concessão deste benefício, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”

A Lei n. 12.470/2011 eliminou o interstício mínimo de dois anos, para que o impedimento fosse considerado de longo prazo, exigido pela Lei n. 12.435/2011. Assim, a verificação do impedimento deverá ser feita caso a caso, considerando as particularidades de cada indivíduo. Para exemplificar, tem-se que a limitação à prática de atividades que exijam esforço físico pelo prazo de um ano, por razões médicas, pode ser considerada deficiência física em relação a uma pessoa de sessenta anos e analfabeta, mas ser desconsiderada para fins de concessão do benefício a um jovem de vinte anos que possua instrução e possa exercer uma atividade burocrática, apta a lhe garantir o sustento.

Desse modo, até a incapacidade parcial para o trabalho pode ser entendida como apta à concessão do BPC[iv].

A avaliação quanto à existência desses impedimentos deverá ser feita por meio de perícia médica realizada em âmbito administrativo (INSS) ou judicial. Todavia, caberá à autoridade administrativa ou judiciária, conforme o caso, decidir se aquele impedimento caracterizará deficiência para os fins da lei.

2.2 Renda familiar

Apenas os idosos e portadores de deficiência física que não possuam meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida pela família farão jus ao benefício assistencial de prestação continuada.

A LOAS estabeleceu um critério objetivo para a apuração dessa carência econômica. O art. 20, §3º, considera que o grupo familiar em que está inserido o idoso ou o deficiente será incapaz de prover a manutenção deste, quando a renda mensal per capita for inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.

A jurisprudência atenua o rigor desse requisito objetivo, na medida em que, à vista das condições particulares de cada grupo familiar, autoriza a concessão, mesmo quando ultrapassado o limite legal. Desse modo, tem-se que a renda familiar per capita de até 1/4 do salário mínimo gera presunção absoluta de miserabilidade, mas não é um critério absoluto. Trata-se de um limite mínimo, motivo pelo qual a renda superior a este patamar não afasta o direito ao benefício se a miserabilidade restar comprovada por outros meios[v].

Em relação ao conceito de família, este é bastante vago. No Brasil, por questões sociológicas, a composição familiar é bastante heterogênea, sendo esse um dos motivos pelos quais a tipificação legal sofreu tantas alterações com o tempo.

A redação original da LOAS estabelecia um conceito bastante amplo ao dispor que família era a unidade mononuclear, que viva sob o mesmo teto, cuja economia era mantida pela contribuição de seus integrantes.

O conceito de família, como se vê, ultrapassava o simples laço de parentesco civil[vi] e era tomado sob a ótica da vida em comum em mútua dependência econômica.

Objetivando restringir o alcance do conceito de família e relacioná-lo aos vínculos de parentesco e de dependência econômica já previstos na legislação previdenciária, a Lei n. 9.720, de 30 de novembro de 1998, alterou o §1º do art. 20 da LOAS, para definir família como o conjunto de pessoas elencadas no art. 16 da Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991, desde que vivessem sob o mesmo teto. Assim, a necessidade de coabitação permaneceu intocada, mas o rol de pessoas a serem consideradas para fins de cálculo da renda per capita diminuiu.

A Lei n. 8.213/91 é a Lei de Benefícios da Previdência Social – LBPS – e, em seu art. 16, elenca os indivíduos que são considerados dependentes do segurado para fins previdenciários. Na época em que a LOAS adotou esse conceito de família, o art. 16 abrangia os seguintes parentes: o cônjuge ou companheiro, o filho ou o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido, os pais, o enteado e o menor tutelado, estes dois últimos, equiparados a filhos, desde que comprovada a dependência econômica.

Atualmente, com o advento da Lei n. 12.435/2011, o conceito de família abrange o requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto.

Pode-se perceber que a lei ainda exclui uma das situações mais comuns, principalmente nas famílias de renda mais baixa, em que as jovens engravidam cedo e, sem renda própria, tendem a continuar morando com os pais, qual seja, a formação do núcleo familiar com avós e netos. Nesses casos, acontece uma situação curiosa.

Se a mãe adolescente fosse portadora de deficiência física, tanto seus pais, quanto seu filho, entrariam no cálculo da renda familiar per capita. Todavia, se um de seus pais fosse maior de sessenta e cinco anos, o neto, por estar fora da relação de dependentes para fins previdenciários, seria desconsiderado para fins de cálculo, da mesma maneira que seus avós o seriam, caso ele, menor, pleiteasse o BPC na condição de deficiente físico. A renda familiar per capita dessa família hipotética, portanto, variaria conforme o integrante que pleiteasse o benefício, fato esse que foge à razoabilidade.

Por esse motivo, mostra-se relevante a construção jurisprudencial que estabelece a necessidade de se verificar a situação de vulnerabilidade socioeconômica do núcleo familiar nos casos em que a renda per capita for maior que 1/4 (um quarto) do salário mínimo. Para essa verificação, é importante que a autoridade competente para decidir sobre o pleito conte com o auxílio de um assistente social.

Em outra questão interessante sobre o núcleo familiar na apuração renda per capita, o Estatuto do Idoso, em seu art. 34, parágrafo único, veda que o valor do benefício assistencial pago ao maior de sessenta e cinco anos seja computado no cálculo da renda familiar. Tal norma tem a finalidade de proteger esse patrimônio mínimo do idoso que, além de custear suas elevadas despesas, ainda teria que fazê-lo em relação a outro membro do núcleo em situação de vulnerabilidade social.

Por esse motivo, a jurisprudência da Turma Nacional de Unificação dos Juizados Especiais Federais – TNU – possui o entendimento de que não apenas o benefício assistencial recebido pelo idoso, mas também benefício previdenciário no valor de um salário mínimo[vii], deve ser excluído do cálculo da renda familiar per capita.

Por fim, ressalte-se que o excesso de formalismo e a interpretação literal são elementos bastante perigosos na análise da concessão do benefício assistencial. Nesse ponto, já se destacou que a jurisprudência exerce importante papel na interpretação adequada de alguns dispositivos legais.

Entretanto, nunca se pode perder de vista que o benefício em comento é uma excepcionalidade no direito brasileiro, apenas sendo devido aos idosos e portadores de deficiência física que não possuem condições de providenciarem sua manutenção por conta própria ou por meio da família.

Assim, mesmo sem ter renda própria, um idoso que vive confortavelmente protegido do risco social decorrente da falta de condições materiais para sua manutenção, na residência de um neto, parente esse cujos rendimentos não são computados para fins do cálculo da renda per capita, não pode ser beneficiado pela concessão do BPC. 

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3. Conclusão

Por suas particularidades, o benefício assistencial de prestação continuada ainda provoca grandes debates quanto à análise dos requisitos para a concessão.

Na busca de melhor adequá-lo aos fins previstos na Carta Magna e às vicissitudes sociais brasileiras, o legislador ordinário já promoveu uma série de mudanças no texto legal, sempre estudado e analisado com bastante cuidado pela doutrina e pela jurisprudência.

Ao intérprete, compete a tarefa de não olvidar o objetivo do benefício, qual seja, garantir uma renda mínima a dois grupos de indivíduos – idosos e portadores de deficiência – que estão mais vulneráveis ao risco social de não exercer atividade remunerada que lhes garanta subsistência.

Em face desse objetivo, todavia, deve-se atentar que a concessão do benefício assistencial, por não demandar prévia contribuição do beneficiário, deve merecer tratamento excepcional, vedando-se interpretações ampliativas de seus dispositivos, com o fim de abarcar situações não almejadas pela Constituição Federal.

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Notas

[i] Lei n. 12.435, de 6 de julho de 2011.

[ii] PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA.ART. 20, § 2º DA LEI 8.742/93. PORTADOR DO VÍRUS HIV. INCAPACIDADE PARA O TRABALHO E PARA PROVER O PRÓPRIO SUSTENTO OU DE TÊ-LO PROVIDO PELA FAMÍLIA. LAUDO PERICIAL QUE ATESTA A CAPACIDADE PARA A VIDA INDEPENDENTE BASEADO APENAS NAS ATIVIDADES ROTINEIRAS DO SER HUMANO. IMPROPRIEDADE DO ÓBICE À PERCEPÇÃO DO BENEFÍCIO. RECURSO DESPROVIDO. I – A pessoa portadora do vírus HIV, que necessita de cuidados freqüentes de médico e psicólogo e que se encontra incapacitada, tanto para o trabalho, quanto de prover o seu próprio sustento ou de tê-lo provido por sua família – tem direito à percepção do benefício de prestação continuada previsto no art. 20 da Lei 8.742/93, ainda que haja laudo médico-pericial atestando a capacidade para a vida independente. II – O laudo pericial que atesta a incapacidade para a vida laboral e a capacidade para a vida independente, pelo simples fato da pessoa não necessitar da ajuda de outros para se alimentar, fazer sua higiene ou se vestir, não pode obstar a percepção do benefício, pois, se esta fosse a conceituação de vida independente, o benefício de prestação continuada só seria devido aos portadores de deficiência tal, que suprimisse a capacidade de locomoção do indivíduo – o que não parece ser o intuito do legislador. III – Recurso desprovido. (RESP 200101200886, GILSON DIPP, STJ – QUINTA TURMA, DJ DATA:01/07/2002 PG:00377 RADCOASP VOL.:00041 PG:00027 RSTJ VOL.:00168 PG:00508.)

Súmula 29 da Turma Nacional de Unificação dos Juizados Especiais Federais – Para os efeitos do art. 20, §2º, da Lei n. 8.742, de 1993, incapacidade para a vida independente não é só aquela que impede as atividades mais elementares da pessoa, mas também a impossibilita de prover o próprio sustento.

[iii] Destaque-se que a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu protocolo facultativo, promulgada no Brasil por meio do Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009, é o único ato internacional cuja integração ao ordenamento jurídico nacional se deu conforme o procedimento previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição, possuindo, portanto, status de emenda constitucional.

[iv] PEDILEF nº 2006.83.03.501397-9/PE, Rel. Juíza Fed. Jacqueline Michels Bilhalva, DJ 28.07.2009.

[v] PROCESSUAL CIVIL. PREVIDENCIÁRIO. RECURSO ESPECIAL. PREQUESTIONAMENTO. ASSISTÊNCIA SOCIAL. BENEFÍCIO DA PRESTAÇÃO CONTINUADA. REQUISITOS LEGAIS. ART. 20, § 3º, DA LEI Nº 8.742/93. I – O recurso especial não deve ser conhecido quanto à questão que não foi especificamente enfrentada pelo e. Tribunal a quo, dada a ausência do necessário prequestionamento. Necessidade de se opor embargos declaratórios para prequestionar a matéria, mesmo em se tratando de questões surgidas no v. acórdão vergastado (Súmulas 282 e 356/STF//RSTJ 30/341). II – A assistência social foi criada com o intuito de beneficiar os miseráveis, pessoas incapazes de sobreviver sem a ação da Previdência. III – O preceito contido no art. 20, § 3º, da Lei nº 8.742/93 não é o único critério válido para comprovar a condição de miserabilidade preceituada no artigo 203, V, da Constituição Federal. A renda familiar per capita inferior a 1/4 do salário-mínimo deve ser considerada como um limite mínimo, um quantum objetivamente considerado insuficiente à subsistência do portador de deficiência e do idoso, o que não impede que o julgador faça uso de outros fatores que tenham o condão de comprovar a condição de miserabilidade da família do autor. Precedentes. Recurso não conhecido.(RESP 200200628587, FELIX FISCHER, STJ – QUINTA TURMA, DJ DATA:21/10/2002 PG:00391 RST VOL.:00162 PG:00061.)

[vi] O Código Civil, em seu art. 1.592, só considera como parentes na linha colateral os indivíduos situados até o quarto grau.

[vii] PEDILEF nº 2007.83.02.509253-0/PE, Rel. Juiz Fed. Derivaldo de F. B. Filho, DJ 05.03.2010.

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Autor: Marcos Antonio Maciel Saraiva. Anotações sobre o benefício assistencial de prestação continuada. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3248, 23 maio 2012 . Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/21843.

 
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